1.
Acusem-me e com razão de muitas
coisas, de muitas quixotices, por exemplo. De cobardias é que não. E quando
amigos meus deram em cobardes, olha!, acabou-se... Com muita pena, mas…
E também peço que desta vez não
me acusem do vício e abuso das reticências. É muito tarde para dizer quer o que
disse durante mais de quarenta anos, quer o que o sangue já não leva do coração
à cabeça.
Quinta-feira, Maio 10
«Morto
entre os vivos e vivo entre os mortos». É assim que um livreiro se sente
durante a Feira do Livro. Qual foi o mal
que os livreiros fizeram para serem castigados por uma concorrência tão
desleal? Não criamos valor? Não damos emprego? Não pagamos impostos? Não
divulgamos o livro? Porque que razão não se cumpre a lei da concorrência e do
preço fixo na Feira do livro?
É
fácil constatar que, nesta Feira do Livro, não há lógica, moral ou camaradagem.
Porque é uma Feira onde não há leis, onde se praticam maiores descontos que na
campanha do Pingo Doce e ninguém diz nada ou fica indignado com o dumping.
É o valor que damos à cultura. Estamos a falar de uma Feira que não dignifica o
livro nem os autores. Uma Feira do salve-se quem puder. Feira que não é mais do
que o prenúncio de uma morte anunciada.
Jaime
Bulhosa
2.
2012-82=1930+39=1969+43=2012.
O mal que os
livreiros fizeram foi serem como somos, em país e não apenas na profissão,
uns protegidos sempre a pedir milagres em Ourique ou em Fátima para que do alto
nos venha o que nós é que devíamos fazer.
Em 1969 era eu um principiante
na profissão de livreiro estava mesmo nas primeiras semanas de gerência de uma
nova pequena livraria quando foi o tempo da Feira do Livro de Lisboa, a 39.ª.
Foi logo aí que, por lição de colegas, antes da experiência própria, tomei
consciência da enormidade do abuso que a feira era contra o trabalho do
comércio livreiro independente: fui convidado para fazer parte de um grupo que
reuniu representantes de dezassete livrarias independentes de Lisboa que
discutiu a concorrência desnaturada que a Feira constituía para nós. Anotar que
todos, nesses tempos de Estado Novo, éramos obrigatoriamente sócios do Grémio
de Editores e Livreiros.
Resultou em alguma coisa? Em
pouco, talvez, mas muito representativo. Houve alarme nas hostes e foi nesse
ano que as novidades deixaram de vender-se na feira com o então estabelecido
desconto-de-feira, os célebres 20%. Hoje isso
hoje…
Que posso acrescentar que
exprima melhor o que desejo se pense? Reticências. Só reticências. Porque
éramos só dezassete livreiros e, tal como eu, quase todos pouco importantes.
Pequenos livreiros, mas dezassete…
3.
Ia ter um desgosto se a 82.ª
Feira do Livro de Lisboa chegasse ao fim sem que ouvisse a voz contestária de
Jaime Bulhosa. Aquela boa memória que trago do ano passado e não só. Que se
ouça uma voz, ao menos uma! Que não ceda à inevitabilidade, que não se acobarde
perante…
4.
Uma das discussões públicas em
defesa da acessibilidade ao livro aconteceu quando a este foi aplicado o I. V.
A. Há-de haver quem se recorde da contestação que exactamente na Feira do Livro
de Lisboa de então uns quantos representativos, respeitados e sem dúvida
respeitáveis escritores portugueses fizeram. Natália Correia, a Grande Natália,
por exemplo. E aquele olhar dela a parar num ouvir o sentido do que ouviu: «E
no pão? Porque não reclamam antes de mais contra o I.V. A. no pão?»!?!
Se os nossos escritores são o
espelho da nossa inconsciência em vez de vozes esclarecedoras da consciência colectiva,
a Feira do Livro de Lisboa pode e até talvez deva ser o palco de contradições,
entre o mal de raiz e o bem de ocasião, que tem sido desde sempre.
Há quarenta e três anos que
vejo as altas patentes da cultura portuguesa e da gravataria política curvadas
ao faz figura de… em que a feira lhes… e que…
Até se compreende que na sua
ingenuidade de interrogações vejam apenas os lados positivos da feira. São
inegáveis. Tanto como os negativos, muito determinantes de mudanças e que muito
deviam ter exigido e devem exigir que calmamente se discutam. A fundo!
5.
Já não será correcto discutir
nos termos de há quarenta anos, os aspectos positivos e negativos das feiras do
livro portuguesas. São apenas uma parcelazita das problemáticas actuais em que
o comércio livreiro se vê envolvido. Se eram parcela antes, hoje muito mais
pequena. Mas… É que a tal lógica errada que está a reger as feiras do livro
portuguesas há oitenta e dois anos, essa é tão errada hoje como sempre foi. Se
um milagre a corrigisse, ah!, isso aí!…
Mudava o quê? Tudo! Quase tudo!
Muita coisa! Só que para isso era necessário que…
Não quer dizer que não haja
gente para isso, não sei é se quem deve sabe e se quem sabe pode. Preferia
mesmo que fossem os escritores e jornalistas culturais a tomarem a dianteira
aos livreiros nesta discussão, mas o que nunca consenti nem consentirei é que
os livreiros se queixem ante mim nem de Santo António, a 13 de Junho, nem da
Senhora de Fátima, a 13 de Maio. Porque Jaime Bulhosa bem tentou fazer vingar a
iniciativa de uma associação portuguesa de livrarias independentes que
colaborasse com a associação dos editores numa nova política do livro, mas…
Como se, sem criarem juntos as condições de sobrevivência, os livreiros
independentes pudessem sair desta derrota de asfixia a que, com e sem crónica,
vem aplicada a pessimista conversa da«morte anunciada».
6.
«Que tal “lógica errada” é essa
a que te referes, coincidindo com o “não há lógica” de Jaime Bulhosa?»
Se esta é a pergunta que alguém
vai querer fazer-me, tenho de ter cuidado. E fôlego? – replicarei. É que para
mim é tarde para lutar pelo meu trabalho e interesses. Só me restam causas e
cara. Só vim por pedir a Jaime Bulhosa e a mais uns quantos livreiros que não
virem a cara. Porque…
Manuel
Medeiros
[Culsete]